Quando um cristão evangélico deve se retirar de uma igreja? Esta é
uma pergunta frequente em nossos dias, e denuncia mais do que um
problema no cristianismo contemporâneo. Muitos membros de igrejas têm se
tornado clientes. O conceito bíblico de eclesiologia tem cedido lugar a
uma forma de consumismo em que os indivíduos, tais quais clientes
comparando preços e qualidade, saem em busca da igreja que mais combina
com seu gosto naquele momento. A questão pode ser concernente à adoração
e à música, aos relacionamentos, ao ensino, ou a um número incontável
de outras coisas. No entanto, o padrão é o mesmo – as pessoas se sentem à
vontade ao trocar uma congregação por outra por praticamente qualquer
razão, ou mesmo por nenhuma razão .
Estes clientes violam a integridade da igreja e o significado da
membresia eclesiástica. Quando os membros saem por razões insuficientes,
a comunhão da igreja é quebrada, seu testemunho é enfraquecido, e a paz
e a unidade da congregação são sacrificadas. Tragicamente, uma
compreensão superficial de membresia eclesiástica enfraquece o nosso
testemunho do evangelho de Cristo.
Não há desculpas para esse fenômeno. Nós não temos o direito de sair
de uma igreja por causa de nossas preferências musicais, nosso gosto
pessoal, ou mesmo porque a programação não atende às expectativas. Estas
controvérsias ou inquietações devem levar o cristão fiel a considerar
como ele poderia ser útil para encontrar e criar uma maneira melhor de
resolvê-las, ao invés de servirem para que ele as use como desculpa para
sair.
Os cristãos não podem olhar para esta questão como meramente uma
questão de consumismo. Somos chamados a amar a igreja e orar por sua paz
e unidade, e não para procurar uma oportunidade de mudar para outra
congregação.
Há momentos, no entanto, quando é correto que deixemos uma
congregação ou denominação. Mas em tal caso, a questão não é gosto, e
sim teologia.
Nenhuma congregação ou denominação é perfeita, e conversas
doutrinárias são frequentemente um sinal de saúde congregacional. A
questão da separação de uma igreja deve surgir apenas quando um problema
de urgente importância teológica está em jogo – quando ficar violaria a
integridade e testemunho do evangelho.
No final, a única razão suficiente para a saída de uma igreja é
teológica. Um cristão fiel deve deixar uma congregação ou denominação
quando aquele corpo obstinadamente rejeita esforços de correção
doutrinária acerca de uma questão de significância verdadeira.
Dito isto, a dificuldade vem nos termos desta afirmação. A história
da igreja cristã inclui algumas emocionantes e incentivadoras quantias
de congregações, denominações e instituições cristãs que, uma vez
comprometidas com doutrinas aberrantes ou heresia completa, foram
posteriormente convencidas de seu erro e corrigidas pela Bíblia.
Infelizmente, há uma lista muito maior de igrejas e denominações que
se recusaram e rejeitaram todas as tentativas de correção. Uma vez
comprometidas com uma trajetória de erro doutrinário e heresia, muitas
igrejas são completamente resistentes à correção pela Palavra de Deus.
A primeira difícil questão que enfrentamos consiste em definir que
tipo de problema doutrinário merece esta urgência. Isso requer uma
estrutura de cuidadosa análise teológica enraizada a uma séria
consideração de quais são os problemas de maior importância – falsos
ensinos e crenças que, se obstinadamente mantidos, requerem separação.
Os cristãos de hoje enfrentam a difícil tarefa de definir
estrategicamente quais doutrinas cristãs e problemas teológicos devem
receber máxima prioridade em termos do nosso contexto contemporâneo.
Isso se aplica tanto à defesa pública do cristianismo em face do desafio
secular quanto à responsabilidade interna de lidar com divergências
doutrinárias. Considerar questões doutrinárias em termos de sua relativa
importância não é uma tarefa fácil, mas é uma tarefa que demanda
seriedade e maturidade teológica. A Verdade de Deus deve ser defendida
em todos os pontos e em todos os detalhes, mas os cristãos responsáveis
devem determinar quais questões merecem atenção de primeira linha em
um momento de crise teológica.
Há muito que tenho defendido o que eu chamo de uma estrutura de
triagem teológica. A primeira vez que encontrei este conceito foi em uma
sala de emergência do hospital. Lá se observa o processo de triagem
médica. Este processo permite que o pessoal treinado faça uma rápida
avaliação da relativa urgência médica. Dado o caos de uma área de
recepção da emergência, alguém deve ser provido de habilidade médica
para que possa fazer uma determinação imediata de prioridade. Quais
pacientes devem ser encaminhados rapidamente para a cirurgia? Quais
pacientes podem esperar por um exame menos urgente? O pessoal médico não
pode esquivar-se de fazer estas perguntas e de assumir a
responsabilidade de dar aos pacientes com necessidades mais críticas o
topo da prioridade em termos de tratamento.
A palavra ‘triagem’ vem da palavra francesa ‘trier’, que significa
“classificar”. A mesma norma que põe ordem à frenética sala de
emergência também pode oferecer grande ajuda para os cristãos que
defendem a verdade na época atual. Temos que aprender a classificar
questões teológicas e doutrinárias como parte de nossa responsabilidade
cristã.
Com isto em mente, gostaria de sugerir três diferentes níveis de
urgência teológica, cada um correspondendo a um conjunto de questões e
prioridades teológicas encontradas nos atuais debates doutrinários.
O primeiro nível de questões teológicas abrangeria as doutrinas mais
centrais e essenciais para a fé cristã. Incluídas entre estas doutrinas
mais importantes estariam doutrinas tais como a Trindade, a plena
divindade e humanidade de Jesus Cristo, a justificação pela fé somente, e
a autoridade da Escritura. Estas doutrinas de primeira ordem
representam as verdades fundamentais da fé cristã, e uma negação dessas
doutrinas representa nada menos do que uma consequente negação do
próprio Cristianismo.
Sem a afirmação da Trindade, não há verdadeiro cristianismo. Sem a
afirmação da plena divindade e humanidade de Cristo, não há evangelho.
Sem a afirmação de doutrinas essenciais ao evangelho de Cristo, não há
mensagem de salvação no cristianismo.
Estas doutrinas de primeira ordem incluiriam o nascimento virginal
de Cristo, a Sua ressurreição física, e outras doutrinas claramente
ensinadas na Bíblia e necessárias para o entendimento de quem é Cristo e
do que Sua expiação realizou. Assim, a justificação pela fé somente é
também corretamente classificada nesta categoria de primeira ordem, pois
sem esta verdade a igreja cai.
O conjunto de doutrinas de segunda ordem se distingue do conjunto de
primeira ordem pelo fato de que os fiéis cristãos podem vir a discordar
sobre as questões de segunda ordem, embora esta discordância crie
fronteiras significativas entre os crentes. Quando os cristãos se
organizam em congregações e em moldes denominacionais, esses limites se
tornam evidentes.
Questões de segunda ordem incluiriam o significado e o modo do
batismo. Batistas e presbiterianos, por exemplo, fervorosamente
discordam sobre o mais básico entendimento do batismo cristão. A prática
do batismo infantil é inconcebível para a mente batista, enquanto
presbiterianos conectam o batismo infantil com a sua mais básica
compreensão da aliança. Permanecendo unidos a respeito das doutrinas de
primeira ordem, batistas e presbiterianos ansiosamente reconhecem uns
aos outros como cristãos fiéis, mas reconhecem que o desacordo sobre
questões de segunda importância impede a comunhão dentro da mesma
congregação ou denominação.
Questões de primeira ordem determinam a identidade e a integridade
cristãs. Questões de segunda ordem determinam a eclesiologia.
Questões de terceira ordem são doutrinas sobre as quais os cristãos
podem discordar e permanecer em comunhão íntima, mesmo dentro das
congregações locais. Gostaria de colocar a maioria dos debates sobre a
escatologia, por exemplo, nesta categoria. Os cristãos que afirmam o
corporal, histórico e vitorioso retorno do Senhor Jesus Cristo podem
divergir sobre o período e a sequencia deste evento sem que haja ruptura
da comunhão da igreja. Os cristãos podem se encontrar em desacordo
sobre um variado número de questões relacionadas com a interpretação de
textos difíceis ou com a compreensão de pontos de comum discordância.
Desta forma, permanecendo unidos a respeito de questões de mais urgente
importância, os crentes são capazes de aceitar um ao outro sem
transgressão quando as questões de terceira ordem estão em disputa.
Os cristãos nunca devem deixar uma igreja devido a questões de
terceira ordem, muito menos devido a questões que nem sequer alcançam
esta importância. Os crentes em Cristo são obrigados a ver todas as
questões da verdade bíblica como incluídas na nossa mordomia do
evangelho, mas o Novo Testamento deixa claro que, enquanto a unidade
quanto aos princípios básicos é vital, a diversidade quanto a outras
questões não precisa ameaçar a unidade da igreja.
Em nossos dias, problemas como a homossexualidade e as mulheres no
pastorado representam questões que prejudicam nossas tentativas de
triagem. A rejeição da autoridade da Bíblia quanto a uma questão como a
homossexualidade é um problema teológico – e não meramente uma
controvérsia moral. Nenhuma igreja pode permanecer dividida sobre esta
questão, e nenhum crente fiel deve permanecer em uma igreja que se
recusa a se submeter à Palavra de Deus. Uma igreja que ordena mulheres
ao pastorado pode ser ortodoxa em muitas outras questões, mas sobre esta
questão ela se coloca contra a Escritura.
Em muitas igrejas e denominações, esta recusa obstinada em receber
correção pela Escritura submete crentes fiéis a uma escolha difícil, mas
permanecer em uma igreja que obstinadamente recusa correção não é uma
opção. Os esforços por “renovação” em muitas destas igrejas têm sido
constantemente rejeitados. Chega o momento em que recusar sair de uma
igreja se torna cumplicidade na heresia.
Estas são perguntas difíceis de fato, mas o crente sério deve usar
extremo cuidado ao considerar quando ficar e quando sair. No final, o
problema da decisão deve ser verdadeiro, e a decisão deve ser tomada com
oração, quebrantamento, e determinação.
Fonte: Ligonier Ministries e Ame Cristo
Tradução: Arielle Pedrosa
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